hoje completo um ano morando fora do Brasil, mais especificamente nos Estados Unidos. desde a adolescência nutri a curiosidade por ir morar em outro país, viver sob outro idioma e cultura, achando que isso de alguma forma me mudaria. de fato mudou, mas não da forma que eu pensava. ano passado, enfim, consegui viver a experiência de vir morar fora e me vi na estranha condição imigrante.
acho que a maior característica dessa condição se dá pelo não pertencimento: não sou daqui, não nasci aqui, não carrego em mim os mesmos símbolos e significados que as pessoas daqui. falo a língua deles, escuto suas músicas, assisto seus filmes e séries, mas eles não me atingem da mesma maneira. tudo tem um quê de distante, diferente de uma maneira em que, embora eu “entenda”, eu não sinto.
todo o processo é um pouco esquisito. você sai do mundo em que conhecia e se joga em algo totalmente oposto. ainda que eu, ao contrário de muitos que fazem o mesmo processo de imigração, tivesse uma base forte para me ajudar a começar, isso não tornou as coisas mais fáceis. o momento no qual você olha para tudo o que estudou e trabalhou e aprendeu e descobre que nada daquilo faz sentido nem serve, pelo simples fato de você não ter um documento, é um baque. aliás, essa ausência do documento é algo que assombra toda a condição de imigrante, ainda mais neste país.
existe uma malícia virulenta em algumas pessoas que conseguem documento aqui, como se de alguma forma isso as reduzisse da classe de “imigrantes”, como se agora fossem menos latinos (e essa condição de latino é algo que renderia um texto por si só). lembro bem do meu padrasto falando: “se começarem a te sondar demais, você fala que já está aqui há algum tempo e já tem documento. e não fala como conseguiu”. eu entenderia ter que mentir assim pra estadunidenses, mas pra brasileiros? me soa mesquinho. no entanto, todas as vezes que ele e minha mãe tiveram problemas e tomaram facada nas costas, quem segurava a faca era brasileiro. maluquices da condição imigrante.
daí que você fica frustrado, você chora, você fica chateado e segue adiante. e as coisas começam a acontecer (é, no fim das contas, uma história boa e feliz).
uma delas foi conseguir um trabalho estável e que permitisse eu me estabilizar. é importante frisar que é um trabalho, e não emprego. não existem empregos nos EUA, mas trabalho tem aos montes. a diferença é muito importante. pois bem, um trabalho; depois aprender o ofício requerido; depois ir me acostumando com o dia-a-dia e a nova profissão. em seguida comprar o primeiro carro, já que esse país é inimigo do transporte público e da ideia de que os humanos gostem de andar, caminhar, correr, enfim, usar as pernas pra qualquer coisa que não seja pisar numa embreagem e no acelerador. umas semanas depois e uma oportunidade para mudar de estado, ir para o novo escritório que abriram. uma baita oportunidade, “a oportunidade da sua vida”, como disse meu padrasto. um ponto muito curioso e particular daqui é que de fato as coisas acontecem muito rápido. numa hora você tá num lugar e numa situação, noutra o cenário e a cena já mudaram totalmente. novo escritório, novo estado, dessa vez morando sozinho em um hotel até achar um apartamento. e aí dessa vez não só a empresa estava em processo de recomeço como eu também estava, o que em um nível psicanalítico meio atrapalhado ajudava a tornar as coisas mais divertidas e interessantes.
daí que uns dois meses depois de me mudar de estado eu me casei, conseguimos um apartamento muito bom e começamos a construir a nossa tão sonhada rotina. Enquanto escrevo isso dou risada pensando em como ter me casado surge do nada, de supetão, tanto no texto quanto na minha vida. de fato foi assim, mas não foi por impulso ou coisa que o valha. foi simplesmente a decisão mais acertada da minha vida. me sinto exatamente como o Bowie:
olhando em retrospecto penso que, bom, é isso: eu vivo o sonho americano. consegui o trabalho, consegui a casa, consegui a garota, consegui a minha autonomia (financeira, emocional, existencial). é exatamente sobre isso, né?
apesar disso, existe um pequeno desconforto que permanece indo e vindo. não tem relação com trabalho, não tem relação com o casamento, não tem relação com a autonomia, nada do sonho americano. a não ser isso: o sonho é americano, e eu não sou estadunidense, sou brasileiro. sou goiano.
algo que eu ouvi com certa frequência no começo era que as pessoas vão te esquecer, te cortar e te deixar fora da vida delas e vice-versa. é uma coisa quando isso acontece com quem você de fato tem uma proximidade, de quem é íntimo do seu coração. mas, de maneira geral, as pessoas que estão nesse lugar em sua vida dificilmente vão embora. elas podem tomar um tempo, claro, mas ir embora é muito pouco provável. já aquelas que apenas orbitam ali, em momentos de euforia e celebração, bom, elas também são importantes, mas é outro nível de intimidade, de modo que tudo bem afastar. lembro que com poucos dias aqui ouvi que “é muito fácil falarem pra você ir visitar, por que eles não vem?”. bom, a embaixada dos EUA em Brasília e toda a burocracia insalubre que tem ali é um motivo bem forte. existe um ressentimento bem escondido, e também muito pulsante, em uma grande parcela de brasileiros que vivem aqui há um bom tempo - especialmente com amigos e familiares e com o próprio Brasil - como se houvessem sido abandonados, e não como se tivessem feito a escolha consciente de partir. daí que toda essa coisa de “deixe essas pessoas pra lá, sua vida agora é aqui” me soa um pouco como aquele papo dos últimos cinco anos do qual você merece apenas pessoas que lutam por ti, que te colocam em primeiro lugar, como se ninguém mais tivesse vida fora das suas vivências. um negócio meio “fuja de quem te causa atrito, apenas pessoas na sua vibe devem estar por perto” e toda essa paranóia, como se nenhuma relação trouxesse atrito, conflito, choque e, em pessoas dispostas, resolução. todo esse papo quase sempre me causava muita irritação e raiva, e isso me lembra que um dos grandes aprendizados de 2022 foi aceitar que tá tudo okay sentir raiva. não só fiz as pazes com isso, como também abracei com intensidade todas as vezes em que a senti. como já foi dito no tuiter uma vez, “existe algo de catártico em ter a raiva e o rancor como companheiro em alguns momentos”, e a pessoa nunca esteve tão certa. ícone.
o filósofo romeno Emil Cioran tem um escrito sobre como não é uma nação que habitamos, mas sim uma língua. desde que li isso em 2015, com meu videogame favorito, nunca consegui esquecer. de modo que a linguagem se tornou tema muito marcante na minha vida (obviamente não fui atrás pra entender melhor porque a vida em era digital é sobre parecer e não sobre saber). de qualquer forma, morar fora acabou me ajudando a entender melhor um pouco sobre isso. sou brasileiro; goiano, mais especificamente. falo português brasileiro. cresci ouvindo esse mesmo idioma, aprendi ele, internalizei ele. é através dele que percebo e entendo a vida que vivo. ainda que eu entenda, fale, escreva, ainda que eu “pense em inglês, sem traduzir”, como dizia minha incrível professora Sandra no curso de inglês, a ideia nasce em português. é algo como diz esse tuíte aqui:

tem um vídeo muito interessante do Fernando Meireles no qual ele fala um pouco sobre isso de maneira bem bonita. nas palavras dele: “eu entendo inglês, mas não sinto em inglês, sabe? se você diz mango tree, em inglês, é só uma árvore. em português, mangueira me lembra minha mãe. é diferente”. mangueira me lembra meu avô, um homem que, apesar de toda a dureza, grosseria e desrespeito, sempre fez o melhor que pode pela família e pelos filhos e pelos netos, que sempre me dizia pra aprender a consertar as coisas e também a plantar e cultivar algumas flores e frutas, que lutou a vida toda pra ter algo para chamar de seu, pra não “ser só um zé qualquer da vizinhança” como fala o Stallone em Rocky. um homem que é a minha referência sobre o que é ser homem. mangueira me lembra minha tia de Uberaba, dona do curso de inglês em que estudei, e que sempre que ia a Goiânia sentava na mesa comigo chupando uma manga e contando da vida que viveu, tentando dividir um pouco de sabedoria e acolhimento, incentivando a dar um passo adiante, a lutar pelo que eu gostaria de ter e pelo que era importante pra mim. quando me mudei pra cá, toda vez que comia uma manga me lembrava dessa mesma tia e me pegava sorrindo e agradecendo a ela pois foi graças às puxadas de orelha e insistência com o estudo do inglês que tive um tanto quanto mais de facilidade com a vida aqui. mangueira também me lembra que sempre que havia uma confraternização de família e amigos na casa do meu avô, onde morei por mais da metade da vida, era debaixo do pé dela que ficávamos para conversar, contar da vida, contar piada, enfim, pra estarmos juntos. mangueira me lembra comunidade.
essa comunidade na qual nasci e cresci - a família Dutra - é o meu idioma. é aonde pertenço e sempre irei pertencer. a língua que eu falo, os símbolos e sentimentos e significados que me pertencem, todos eles vêm dessa comunidade. mais do que brasileiro, goiano. mais do que goiano, Dutra. conforme o tempo passa e a gente cresce, é preciso escolher o que fica, o que se passa adiante e o que pode ser deixado pra trás. mas a minha forma de entender a vida, a minha língua, sempre vai ser essa que a minha primeira comunidade me ofereceu.
isso não significa que eu esteja insatisfeito com a vida que tenho agora, com o que conquistei - muito pelo contrário: é justamente graças ao que conquistei que consigo entender tudo isso. no entanto, estaria mentindo se dissesse que não me sinto em casa aqui. como minha esposa costuma dizer: “eu amo nosso apartamento, nossos móveis, cada pedacinho nosso que está distribuído em todo esse espaço. mas aqui, nos EUA, na Flórida, é estranho. ‘casa’ pra mim é nosso apartamento, mas não a cidade”. é precisamente isso. ao menos com um ano. minha mãe costuma dizer que depois de três anos as coisas facilitam e você se acostuma. daqui dois anos vou ver o que sinto e penso sobre.
por agora me sinto como Grian Chatten do Fontaines D.C. em “I Love You”, provavelmente a música que mais ouvi esse ano. nela, o músico fala sobre amar a Irlanda, seu país natal, e como ele sente que, de certa forma, traiu essa mesma terra ao se mudar pra Inglaterra. tudo o que o ajudou a construir sua carreira se deu pela condição caótica e cultural da Irlanda, em parte gerada pela própria Inglaterra. como se ele tivesse usado tudo aquilo que seu país natal tivesse e depois o abandonou, como se o jogasse fora. então fica uma culpa amarga na garganta e no coração por esse abandono. É um pouco disso. tenho certeza de que existem diversas músicas em português que falam sobre o mesmo sentimento, mas me pareceu muito simbólico usar as palavras do idioma onde habito agora para relembrar do amor e da saudade que tenho pelo que sempre serei: brasileiro, goiano, Dutra.
Que orgulho e emoção em ler essas palavras. Você foi sincero e muito sensível. Lágrimas caiam ao ler e me ver nesses mesmos sentimentos . Passe o tempo que passar, esse sentimento que você descreveu é único e o mais verdadeiro . E o mais bonito: “não esqueça quem você é, de onde você veio.”
Te amo!
É uma honra dividir a vida com você e seu coração sensível e observador. Te amo em todos os idiomas e em todas as suas versões, locações, habitações e paisagens!