“when you say ‘mango tree’, I think just mango tree in English; but in Portuguese, (mangueira), it means my childhood, my mother’s house, the fragrance of fresh mangoes… it’s a more tangible emotion”.
como diria a rapazeada da internet: é isso.
não importa quanto inglês eu fale, leia, escute, domine e viva. no fim, mango tree é só uma árvore. mangueira, como na foto acima, é a casa dos meus avós onde passei os últimos 15 anos, com uma ou outra mudança. mangueira são meus avós, minha infância, minha adolescência, minha vida adulta, minha tia, minha família. meu legado e herança.
desde que nos mudamos pra essa casa sempre tivemos essa mangueira. como uma boa criança que só vivia na frente do computador, nunca me passou pela cabeça que esse era o motivo pra termos tanta manga nas refeições: café da manhã, almoço, na salada, no arroz, na carne, no lanche, na janta, no lanche da madrugada. manga pra dar e vender. muita coisa que se perde pela desatenção. esse pé já era a raiz sobre a qual erguemos nossos galhos e fizemos nossos frutos.
em algum momento ela se tornou a representação da minha família. não consigo apontar ao certo quando, mas se tivesse de chutar, diria que foi quando notei que minha tia de Uberaba, sempre que vinha, se sentava à mesa com uma faca, duas mangas e se punha a comer enquanto me ouvia falar das últimas novidades em minha vida, do que tava sentindo, do que acontecia comigo. de certa forma, ela é a única quem fez isso na minha família. nunca entendi bem o porque. não fui o único sobrinho a morar com ela. não fui o único que ela tentou dar uma oportunidade de vida melhor - é graças a ela que posso falar inglês, por exemplo. mas havia uma conexão ali muito boa e muito saudável para mim. foi ali que a manga virou um símbolo. é incrível entender que viver é construir símbolos que justifiquem a nossa vida.
por volta dos vinte, vinte e dois anos, eu descobri que para além da manga amarela temos também a manga roxa:
foi por acaso, no sítio da minha tia em Brasília. lembro que quando a vi pensei “eita porra essa ai tá estragada”, o que levou todo mundo a rir de mim (com razão). daí que me deram uma pra provar. era uma delícia. mais do que a manga amarela tradicional. o grande tchã da manga é a adstringência que ela deixa na boca uma vez que você a engole. aquele saborzinho lá na parte de trás, coçando, grudando. no começo da língua ela é docinha e macinha e viscosa. mesmo depois que você a engole, bebe água (ou no caso da minha família, café), ainda é possível sentir aquele saborzinho na parte de trás da língua, perto do palato.
em muitos sentidos, eu sinto que essa é a representação da minha família. em alguns momentos, a adstringência era tamanha que eu passava mal, ainda que em algum ponto pudesse ter sido doce. especialmente a minha tia, que faleceu esse ano. gosto de pensar que todos nós da família Dutra somos uma mangueira. todos viemos da grande árvore mãe, minha bisavó, e por sua vez cada um de nós gerou novas mangueiras. sinto que chegou a minha vez de ser uma árvore, ter minhas raízes fincadas e deixar com que meus galhos, folhas e frutos cresçam e aconteçam por si só.
a questão é que, como apontei aqui, existe um limite do que devo passar adiante. minha família é sim parte de quem eu sou, mas eles não são quem eu sou. há que se romper algo, é preciso que um nó seja dado para evitar que a adstringência passe adiante. não é a viscosidade que tem que nos unir. é a sombra dos galhos em uma tarde de sol. os frutos caindo no meio da tarde como quem diz “opa, estamos prontos”. são as cadeiras postas ao redor da árvore em uma tarde de churrasco enquanto todo mundo ri, conta piada, fala dos próprios problemas, mata saudade. é o prato com faca e duas mangas numa tarde qualquer entre uma tia e um sobrinho.
se me fosse permitido escolher, eu seria um pé de manga roxa. quero poder toda a história e lembrança de onde venho em mim, mas mais doce, mais gentil, como uma descoberta totalmente irreverente, como naquela tarde em Brasília.
A coisa mais bonita que a gente pode fazer com o que fizeram de nós é honrar nossas origens e transformar essa bagagem em uma nova aventura, mais leve, mais autêntica, mais nossa. Te ver elaborar sua história, sua identidade e suas questões de forma tão honesta e habilidosa, como o ourives das palavras que você é, é uma honra e um privilégio enormes. A árvore que a gente plantou tá crescendo e vai ficar a cada vez mais frondosa. Obrigada por dividir seu olhar curioso, criativo, sensível e amoroso sobre a vida, e por me deixar entrelaçar minhas raízes às suas. Te admiro e te amo pra sempre
Olá. Maravilhosa reflexão. Acredito que um dos momentos de sabedoria é quando, além de aceitarmos quem somos, aceitamos quem as pessoas ao nosso redor são, pois isso nos permite compreender a dinâmica das nossas relações. Somente através dessa compreensão que fazemos as pazes conosco e com o mundo, mantendo o que queremos e sem medo de recusar o que não queremos - quando possível, já que há situações que estão além das nossas forças. Bonanças.